10 março 2016

A nebulosa história do surpreendente invento do Dr. Angelus - que Deus o tenha!

Já faz um bom tempo desde o acontecido, mas me lembro com bastante clareza da peculiaridade daquele dia. Até hoje correm boatos sobre o incidente na casa do Dr. Angelus - que Deus o tenha!, mas nenhum se assemelha verdadeiramente ao que aconteceu naquela tarde... 

Eu, bom, eu sei o que aconteceu. Eu estava lá. Eu vi tudo.

Como um mordomo exemplar, cheguei ao serviço a tempo de preparar e servir as torradas crocantes que o Dr. Angelus - que Deus o tenha! tanto estimava em seu desjejum, a refeição mais importante do dia, ele dizia. Naquela manhã em especial negou o café da manhã, disse estar sem fome e comentou qualquer coisa sobre uma grande descoberta que poderia mudar o rumo da humanidade antes de sair às pressas para o laboratório. Não me entendam mal, mas o Dr. Angelus - que Deus o tenha!, era um senhor um tanto quanto rechonchudo e tê-lo negando comida, ainda mais suas tão preciosas torradas, era mau presságio.

Claro que fiquei intrigado com tamanha estranheza, mas sou um mordomo exemplar e não me deixei abalar, afinal, eventualmente todos podemos acordar ansiosos com uma possível descoberta que mudará o rumo da humanidade. Repetindo isso até me convencer continuei meu serviço até a hora do almoço, quando pus a mesa normalmente, sequer imaginando o tamanho do problema que me esperava.

Tão apressado quanto saiu, o Dr. Angelus - que Deus o tenha! -, entrou em casa para o almoço. Pontualidade sempre foi sua característica mais notável, mas naquele dia em especial, como tinha que ser, ele apareceu três horas atrasado. E, se não bastassem dois maus presságios, ao chegar o Dr. não estava exatamente... Apresentável... Tinha as roupas chamuscadas, os cabelos desgrenhados e andava como se não tivesse percebido que lhe faltava um dos pés do sapato.

Fiquei curioso, claro, mas como bom mordomo que sou, não questionei sua falta de decoro, tampouco o volume coberto com uma toalha suja que ele carregava debaixo do braço, assim como não fiz perguntas quando ele soturnamente mandou que eu guardasse o almoço e logo em seguida subisse para seu escritório. Se o dia já indicava excentricidade, naquele momento ele se tornou estapafúrdio.

Cedi aos encantos da minha curiosidade e, oh, maldita curiosidade humana!, tirei o almoço às pressas e subi para o escritório. O Dr. Angelus - que Deus o tenha!, sempre foi muito atencioso comigo e, não que eu goste de me gabar disso depois daquela tarde, mas sempre confiou mais em mim do que em sua própria prole. Creio que devido a isso ele me chamou por meu primeiro nome quando bati na porta. Sua voz embargada pediu que eu entrasse, sentasse e respirasse fundo três vezes, pois estaria prestes a ter minha vida mudada pela maior descoberta do século.
E devia mesmo ser a maior descoberta do século... Talvez a maior desde a descoberta do fogo! Uma pena que não pudemos apreciá-la por tempo suficiente... Não que eu goste de ficar revivendo os minutos pavorosos que passei após adentrar o escritório naquela tarde macabra e sinistra, mas não hei de ficar muito tempo nesse mundo e o papel sempre foi o melhor funeral para os contadores de história.

Assim que me sentei e respirei fundo como o Dr. Angelus - que Deus o tenha! ordenou, ele segurou meus braços sob os da cadeira, olhou intensamente dentro dos meus olhos e disse com a voz sufocada pela expectativa: "Josefim, isso que eu vou te mostrar agora é possivelmente a obra da minha vida. Apresento-te o...". E foi nesse momento que o tempo congelou, como deve acontecer em toda história. No mesmo instante em que ele retirou a toalha de cima do objeto que trouxera, o som de engrenagens começou apesar de não haver nenhum mecanismo visível. Fora o barulho misterioso e ensurdecedor, o invento brilhava tanto e era tão bem trabalhado que, naquela fração de segundo, só pude pensar no quão genial e artista era o Dr. Angelus - que Deus o tenha!

Tão instantâneo quanto o barulho das engrenagens e tão inexplicável quanto as mesmas foi o momento em que o Dr. se juntou aos outros grandes nomes do século. Assim que se aproximou do invento para completar a frase, seus olhos foram tomados por um brilho insano e ele saltou ao encontro de sua obra magnífica e nunca mais o vi ou ouvi falar dele. Nada de sangue, de pista ou explosão...

Já faz alguns anos que espero nessa sala pela sua volta, afinal, bom mordomo que sou, não me retiro sem que seja ordenado pelo patrão, mas lhes afirmo uma coisa: nada do que contam por ai na cidade se equipara ao que vivi naquela tarde. Nada chega aos pés do que aconteceu! E eu sei disso porque, bom, eu estava lá...

[Esse texto foi escrito e publicado em 2013 num antigo blog.]

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